​Texto pertencente à folha de sala do espectáculo do dia 14 de Abril de 2007 no Cine-Teatro de Alcobaça de José Alberto Vasco
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UM CASO DE AMOR À PRIMEIRA VISTA

Apaixonei-me pela mÃmica do José Gil logo à primeira vista e devo já esclarecer que a questão é mesmo tão grave como parece. É tão grave que se mantém há mais de uma década. Sem qualquer restabelecimento digno de registo. A história do espectáculo a que esta noite vamos assistir é também uma história que começou há muito tempo. Há muito mais tempo… É a história dramática de uma arte chamada MÃmica, ou Pantomima, que nos remete essencialmente para a expressão e representação de acções e emoções unicamente por intermédio de movimentos corporais como a linguagem gestual, passos e até o próprio olhar... A MÃmica terá tido as suas raÃzes no teatro clássico grego do século V a. C. e a sua história cimentar-se-ia já no Renascimento, quando a commedia dell’ arte consolidou a sua anterior radicação na burlesca arte teatral dos mistérios medievais. A sua influência não deixaria mesmo de seguidamente seduzir o bailado e a ópera, alargando já no século XX essa sua tentação à arte cinematográfica. A MÃmica moderna terá nascido em 1951, quando o mimo francês Marcel Marceau adaptou dramaticamente à Pantomima o conto O Capote, de Nikolai Gogol, pouco tempo depois de ter criado a sua marcante e inconfundÃvel personagem mÃmica Bip. A designação mimo evoluiu também historicamente, tendo começado por ser genericamente atribuÃda a qualquer actor, tendo a sua emancipação apenas ocorrido já no século passado, designando a partir de então apenas os actores que se dedicam exclusivamente a essa arte de transmitir uma acção ou narração por meio de gestos.
A S.A. Marionetas aborda a MÃmica desde 1990, em espectáculos como Um Mimo de Mimo, Cartoon’s de MÃmica, Cartoon’s de MÃmica II e Entreacto, que tem regularmente apresentado em grande parte do nosso paÃs. Foi numa dessas suas representações, em 1991, que surgiu a minha tal paixão pela arte do José Gil, caso rarÃssimo e provavelmente único de um artista português que se dedica a encenar, coreografar e interpretar MÃmica em Portugal. E a verdade é que o José Gil o faz com uma plasticidade, uma versatilidade, um humor, uma sensualidade e uma empatia que não deixam ninguém ficar indiferente. O José Gil, enquanto mimo, é um sedutor que em pleno palco manipula tentadoramente o seu próprio corpo, praticando o gesto como pura arte sensorial, potenciando em si e nas personagens a que dá vida um pouco de toda a história da MÃmica. É como se durante cerca de 50 minutos ele conjugasse em si mesmo uma mimese de Arlequim, Columbina, Pantaleão, Pedrolino, Polichinelo e Pierrot, redimensionando-a em cada novo instante com a subtil vivência do Bip de Marcel Marceau e das estimulantes personagens cinematográficas de Jacques Tati e Buster Keaton. E como se isso já não fosse suficiente, este espectáculo vive também da música programática para ele originalmente concebida pelo guitarrista Israel Pereira, que continua a acompanhar criativamente o José Gil em palco, encantando-nos também com essa sua arte que tanto enobrece ritmicamente este espectáculo.
Os Cartoon´s de MÃmica a que esta noite vamos assistir não são um espectáculo qualquer. Nem surgiram de um momento para o outro. São essencialmente um espectáculo criado e recriado durante anos de digressão e mais de 150 representações por esse paÃs fora. Em palco e na rua. Os Cartoon’s de MÃmica personalizados pelo José Gil e pelo Israel Pereira são muito mais que um simples espectáculo teatral. Tal como na nossa vida, eles protagonizam momentos alegres e momentos melancólicos. É claro que este é um espectáculo sem meias tintas e sem qualquer espécie de cinzentismo. Tudo o que nele existe, existe mesmo. Ilumina-nos. É por essas e por outras que eu não me consigo libertar desta paixão… Felizmente!
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José Alberto Vasco